Um livro de quase memórias de Gabriel García Márquez chama-se “Vivir para contarla”, título traduzido para “Viver para contar”; no espanhol original a ideia tem maior densidade, refere-se a contar a vida que se viveu, e não à busca de vivencias para contar. Nada disso obscurece a genialidade de “Gabo”, mas à parte o que nos é lembrado é algo que as pessoas parecem praticar todo o tempo: viver para uma plateia imaginária que teria interesse em tudo o que se faz e diz, uma roupa nova, um prato caro em restaurante idem, viagens de férias, novos e velhos relacionamentos, reuniões de trabalho, opiniões políticas e outras. A dolorosa verdade é que apenas os muito próximos têm um relativo interesse no que os demais vivem e falam, a menos que se trate de “celebridades” ou que se protagonize um vexame colossal que será o divertimento passageiro do público.

As diversas redes sociais vieram a potencializar esse fato, é muito difícil que o usuário abusivo de redes tenha o que se pode chamar de vida real. Afinal, faz produção praticamente teatral de maquiagem, figurino e cenário, ensaia o que dirá aos supostos seguidores e calibra o discurso conforme o que julga ser a receptividade geral. Os chamados influenciadores digitais influenciam bem menos do que pensam, apenas ocupam espaços vagos na vida e na mente dos que os seguem, somente quando usam técnicas publicitárias para vender produtos que os patrocinam parecem obter algum resultado, mas a propaganda em rádio, TV, mídia impressa, também obtém.

Nesses tempos de uso desenfreado das redes sociais, por contraditório que pareça, pessoas hoje pedem na Justiça o Direito ao Esquecimento, seja por informações postadas por elas mesmas ou outrem, o que é assunto controvertido por chocar-se com as questões de liberdade de imprensa, o direito de informação e o direito à privacidade, muitas vezes produzindo um emaranhado difícil de deslindar.

Este assunto é objeto de muitas polêmicas, pois existe também o Direito à Memória, normalmente relacionado a uma comunidade, o qual também deve ser utilizado com extrema cautela, evitando trazer lembranças indesejáveis a uma sociedade, como é o caso de regimes ditatoriais que provocaram genocídios.

No entanto, todos temos também os direitos da personalidade, aqueles relacionados a cada ser humano, que englobam seu corpo, imagem, nome, e muitos outros aspectos que caracterizam identidade, isto é, que preservam a individualidade.

Este direito engloba a integridade física, psíquica e moral, está ligado a ideia do que é uma pessoa, não sendo, portanto, exatamente um direito, e sim o conceito básico sobre o qual se definem todos os outros direitos. Afinal, a substância da própria personalidade é resultante da forma como nos expressamos, as principais caraterísticas da construção do pensamento, e o próprio dicionário não traz uma definição muito precisa do que seja uma personalidade.

Entretanto, os direitos da personalidade são direitos civis nos quais se baseiam por exemplo nossas restrições severas à tortura, abandono de incapazes, doações de órgãos, que regulam nossa integridade física, assim como à psíquica, de sigilo, liberdade, privacidade, ou a moral, de honra, intimidade, propriedade intelectual, e muitas outras.

Assim, a personalidade civil de cada um inicia no nascimento, com o nome atribuído pelos familiares, o qual tem um caráter absoluto, ou seja, de extrema relevância na vida social, parte intrínseca da personalidade. Hoje discutimos muito o nome social, modo como a pessoa gostaria de ser nominada e reconhecida na sua comunidade se considera que nome civil pode, por algum motivo, não refletir sua identidade de gênero. Uma das ancoragens da identidade pessoal, nomes podem revelar etnia, influindo muitas vezes até em entrevistas de emprego ou apresentar conotações positivas ou negativas em termos de significado, como é o caso de crianças chamadas Alexa cujos pais processam a Amazon alegando bullying, o que podeprovocar um ajuste psicológico mais precário.

O direito à intimidade é inviolável, protegendo de intromissões indevidas no lar, família, nas correspondências, incluindo o que pode constituir calúnias ou difamações; e o direito ao esquecimento faz parte muitas vezes da privacidade, de não pagarmos centenas de vezes por um mesmo crime, tenha sido ele feito ou injustamente atribuído.

Uma grande pensadora, Hannah Arendt, declarava que escola é o lugar do passado; coadunar o desejo de exposição, a necessidade de lembrar a memória coletiva e ao mesmo tempo preservar a intimidade, garantindo o esquecimento dos pequenos deslizes é o grande desafio de todas as instituições educacionais atualmente.

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.