Nestes dias de pandemia da Covid-19, temos tido oportunidade de fazer reflexões que permitem a tomada de consciência e a mudança de rumo, iluminando distorções que prevaleceram como normalidade na última década. A modernização, a austeridade e a flexibilização mostram-se imperativos para superação dos desafios impostos à sociedade brasileira.

Crítica e autocrítica mostram-se como pilares na valorização da ciência e da saúde pública, deixando um longo rastro mórbido, cognitivamente ressonante, em escala pandêmica, relacionado tanto ao consumo das drogas quanto à manipulação das expectativas e dos temores da destruição cotidiana do potencial humano a ela relacionado, ora memetizado como “Novo Normal”.

Neste contexto pandêmico, no que tange à implementação e à fiscalização das políticas de drogas, a coalizão obscura ligada à perpetuação da violência demonstra que seus grandes articuladores e beneficiários não buscam trégua – antes, fomentam astutas artimanhas e novos estigmas, perseguindo e/ou excluindo pessoas e famílias que neste caótico cenário precisam de orientação, acolhimento e tratamento.

É fato que ainda ignoramos a peculiar irracionalidade dos critérios que tornaram certas substâncias ilícitas, enquanto outras são legalmente celebradas e até propagandeadas pelos veículos de comunicação. Tal situação tem acarretado dissonância acadêmica entre as especialidades, introduzindo distorções éticas que dificultam aos pesquisadores a produção de evidências científicas, bem como o desenvolvimento de metodologias de atendimento e de medicamentos mais acessíveis, seguros e eficazes, privando a comunidade de alternativas terapêuticas.

Neste “Novo Normal”, o provimento de segurança e Justiça por parte do poder público pode cristalizar decisivas e necessárias mudanças de rumo, correndo-se o risco de um colapso iminente, com potencial para reunir toda a coletividade como espectadora de perversas mazelas sociais.

Precisamos aproveitar a oportunidade apresentada pela crise pandêmica, inovando e/ou articulando de maneira original as tradicionais estratégias, vislumbrando a construção de uma sociedade em transformação que esteja efetivamente voltada para o bem comum e a paz social, ou seja, para a inclusão, a equidade, a fraternidade e a solidariedade.

Politicamente, algumas ações no âmbito legislativo apontam o estabelecimento de diferentes modelos na tentativa de legalização e regulação do uso e do mercado de drogas hoje ilícitas, tanto na prevenção e no tratamento do uso abusivo, quanto na educação e na proteção de crianças e adolescentes.

Precisamos ousar em emancipar-nos da lógica bélica de devastação de comunidades pobres e periféricas, trocando-a por políticas de reparação, eficazes em prevenção, tratamento e reinserção social, considerando décadas de exposição a modelos que engendraram, ainda que de maneira interveniente, estigmatização e violação recorrente de direitos.

Ao tempo em que modelos de enfrentamento forem sendo avaliados e discutidos, simultaneamente ações de enfrentamento precisam ser redesenhadas, mostrando-se oportuno introduzir, inclusive, a participação das vítimas no desenvolvimento desse processo.

Temos a oportunidade de sair desta crise global desarticulando os perversos modelos geradores de violência, alienação, medo e morte. Este “Novo Normal” pode ter como herdeiro o planejamento estratégico, apontando para o desenvolvimento de ações psicologicamente motivadoras, politicamente justas, economicamente emancipadoras e eticamente pacificadoras do laço social.

Guilherme de Barros Perini é promotor de Justiça e coordenador do Comitê do Ministério Público do Estado do Paraná de Enfrentamento às Drogas e do Projeto Estratégico Semear – Enfrentamento ao Álcool, Crack e Outras Drogas

Noeli Kühl Svoboda Bretanha, psicóloga do Projeto Estratégico Semear