Copyright Rob Youngson / Focus Features – Buddy (Jude Hill) entre os avós em ‘Belfast’: autobiografia de Branagh

Não é qualquer um que consegue fazer um filme autobiográfico e se encher de indicações ao Oscar. Mas o ator e diretor Kenneth Branagh conseguiu fazer isso em ‘Belfast’, filme que estreia no dia 10 em Curitiba. A boa notícia é que o filme passa longe de ser uma exaltação à carreira dele mesmo e traz um recorte de vida que mistura o lado lúdico da infância e a tensão do mundo em volta. Em seu filme mais autoral, literalmente falando, Branagh recebeu três indicações ao prêmio: uma de produtor, uma de diretor e uma de roteirista. A má notícia é que o filme, que se passa no fim dos anos 1960, ficou incrivelmente atual.

Quanto às indicações ao Oscar, elas não se resumiram a Branagh. Houve outras quatro indicações: atriz coadjuvante (Judi Dench), ator coadjuvante (Ciarán Hinds), canção original (‘Down to Joy’, de Van Morrison) e melhor som. Na parte técnica, também é de se ressaltar o trabalho do diretor de fotografia Haris Zambarloukos e um belo trabalho em preto-e-branco, com algumas poucas pinceladas em cores.

Em ‘Belfast’, o ano é 1969. O personagem que viria a se tornar Kenneth Branagh tem apenas 9 anos e é chamado apenas de “Buddy” (Jude Hill). Ele tem um irmão mais velho (Lewis McAskie), a mãe (Caitriola Balfe) e o pai (Jamie Dorman), e no filme eles são chamados de Will, Ma e Pa. Mais genérico que isso, impossível. Também estão presentes a avó (Judi Dench) e o avô (Ciarán Hinds), pais do pai dele. O pai é carpinteiro e, por causa do trabalho, acaba passando vários dias fora de casa. A mãe é dona de casa, os avós são aposentados, as crianças se divertem na rua. Buddy gosta de uma menina na escola, brinca de capa, escudo e espada, se encanta quando vai ao cinema, tenta imitar as jogadas de Danny Blanchflower – um futebolista norte-irlandês que se destacou na Copa de 1958 e virou ídolo no Tottenham, da Inglaterra. Uma família comum de Belfast, pertencente à classe trabalhadora, de religião protestante, com contas a pagar.

A infância de Buddy pareceria bastante ordinária, não fosse por um detalhe: esse recorte de vida está inserido no contexto dos conflitos entre protestantes (maioria) e católicos (minoria), uma mistura de guerra santa, briga de gangues e guerrilha civil que ceifou muitas vidas e criou um clima de terror na Irlanda do Norte. Naquele ano de 1969, protestantes chegavam a jogar pedras e bombas caseiras em católicos e vice-versa. Para piorar, quando a polícia se metia na história, a coisa piorava. Anos depois, quando o exército inglês se meteu, aí a coisa degringolou de vez. Basta dizer que o dia 30 de janeiro de 1972 ficou conhecido como “domingo sangrento” – não foi à toa que John Lennon, em 1972, e a banda U2, em 1983, escreveram músicas chamadas ‘Sunday Bloody Sunday’. A rigor, esses conflitos só pararam em 1998, após um acordo que estabeleceu bases para um novo governo em que católicos e protestantes compartilhassem o poder e fossem iguais. Mesmo assim, ainda há alguns problemas ocasionais.

Dito isso, Branagh poderia ceder à tentação de mostrar o mal que esse conflito faz em uma criança de 9 anos – como Steven Spielberg fez em ‘Império do Sol’, de 1987. Ou poderia escolher um lado do conflito e mostrar como a criança de 9 anos é protegida pelo pai – como Roberto Benigni fez em ‘A Vida é Bela’. Mas ele optou por focar na vida cotidiana dessa criança de 9 anos, deixando o conflito como plano de fundo. Mas não totalmente de fora, já que as ocorrências entre protestantes e católicos impactam na vida do menino.

Branagh não pensou nisso, nem planejou isso, mas ‘Belfast’ ficou incrivelmente atual. O filme era para estrear em 17 de fevereiro, mas a data foi adiada para 10 de março. Nesse meio-tempo, a Ucrânia virou um palco de guerra, após a invasão russa. As imagens de uma guerra ocorrendo em tempo real em 2022 ajudam a perceber como é difícil tentar levar uma vida normal em cenários desse tipo, seja na Ucrânia, seja na Irlanda do Norte, ou qualquer outro lugar. Sair de lá ou ficar, eis a questão. Conflitos como esses são cada vez mais absolutamente sem sentido. Por que eles existem? Quando a isso, quem responde é o avô de Buddy: “Se houvesse uma única resposta, os homens não estariam se matando”.

O elenco de ‘Belfast’


Jude Hill
Personagem: Buddy

Caitriona Balfe
Personagem: Ma

Jamie Dornan
Personagem: Pa

Lewis McAskie
Personagem: Will


Ciarán Hinds
Personagem: Pop

Judi Dench
Personagem: Granny

Colin Morgan
Personagem: Billy Clanton

Josie Walker
Personagem: Auntie Violet