O Batuque é uma religião afro-brasileira marcada por uma liturgia viva, de alegria e cultura de paz (Imagem: Pixabay)

Para nossa perplexidade, cresce em destaque a discussão do tema do racismo neste fim de semana, há poucos dias da comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra, o feriado que outrora comentei, não é nacional e é estrutural. E deixo esboçado aqui meu novo inconformismo com o tema do racismo, fundamentada agora no recente assassinato do brasileiro João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos – imobilizado e morto no estacionamento do supermercado Carrefour, na cidade de Porto Alegre, na última quinta-feira (19). 

Sua morte foi um tanto quanto semelhante à do americano George Floyd, assassinado no dia 25 de maio, após ter o joelho de um policial branco pressionado contra seu pescoço por quase nove minutos. Ambos foram mortos por policiais/vigias – pessoas que deveriam cuidar, zelar, servir, proteger a vida; jamais atentar contra ela.

De acordo com a família, Nego Beto, apelido carinhoso de João Alberto, era adepto de religiosidade de matrizes africanas, o Batuque. Algo que denota claramente sua identificação com a cultura negra: no terreiro onde cumpria com suas obrigações religiosas, era tamboreiro. 

Via racistas de plantão, associar a imagem de Nego Beto a algo demoníaco, compará-lo a um fazedor de feitiço ou tecer comentários carentes de esclarecimento teológico, marcaram o auge da intolerância religiosa pelas redes sociais neste fim de semana. Nossa sociedade é tão precária na percepção da fé afro-brasileira que, ironicamente, a morte de mais um negro é tida com descaso.

O que esperar de um país em que até mesmo as ações do Carrefour dispararam na bolsa de valores um dia após ao episódio? Tais exemplos são prova concreta de que o Brasil assimila de algum modo, o comportamento norte-americano macartista, formatado para ridicularizar, expor e frisar que ser negro é ter aparência suspeita e atitude duvidosa.

O que é o Batuque, afinal?

O Batuque é uma religião afro-brasileira, e por vezes chamada de religiosidade afro-gaúcha, já que está presente quase que na totalidade no estado do Rio Grande do Sul e em lugares vizinhos a ele (como Santa Cataria, e em países vizinhos ao sul do Brasil, como o Uruguai e a Argentina). O fato é que, para nossa consternação, o Batuque é uma expressão de tudo o que não representa o racismo ou a violência. É religiosidade que se realiza por meio da alegria, de um espaço sagrado onde se é tocada uma Festa – o batuque – justamente daí vem seu nome.  

Com aspectos bastante semelhantes ao Xangô Pernambucano, é por vezes confundido com o Candomblé e com a Umbanda. Contudo, é uma religiosidade com identidade própria, única em espiritualidade e ritualística, que até mesmo os meios de comunicação mais respeitáveis tiveram dificuldade em explicar, dado à falta de formação para abordar temas religiosos mesmo quando tentaram relacionar a brutalidade do assassinato de Nego Beto com sua identidade religiosa.

Quem dá início à celebração é o pai ou mãe de santo responsável pelo local. E, após seu sinal, geralmente representado pelo toque de uma sineta, é justamente o tamboreiro o responsável por iniciar a festa: bate com as mãos em um tambor e, assim, dá ritmo aos cânticos religiosos a serem entoados em roda.

Todos dançam, rezam, celebram. O Batuque é expressão religiosa comunitária, acompanhada de devoção aos ancestrais e culminada com a partilha de alimentos. É uma liturgia viva de celebração da vida, de fraternidade, de irmandade, de conexão entre as divindades e o mundo material. Enfim, é uma religião de paz e de inclusão. 

Precisamos de toques práticos contra o racismo 

Carecemos de uma cultura de paz verdadeira. É palavra-chave desgastada, mas sempre urgente. É presente no Batuque e em qualquer religião que tem a fraternidade como pressuposto. A brutalidade para com as pessoas de ascendência africana é uma questão importante a se discutir com ênfase. Até porquê, nos últimos tempos, na era das câmeras de celulares e outros adereços, acentuam-se provas de que o mundo não tem necessariamente construído bases para uma cultura de paz.

No caso de Floyd e do Nego Beto, talvez sem imagens feitas por quem passava pelo local dos atos de violência, tais episódios teriam relatos “oficiosos” quem sabe totalmente discrepantes dos “oficiais”, da verdade sobre o que aconteceu. É o que geralmente ocorre quando quem está sendo pisado tem seu fim relatado pelo legitimador da violência em nome da segurança, do bem estar social, do toque de praticidade velado de sangue.

Assim nos foram contados fatos outrora narrados em nossos livros de História. Quanta coisa não deve ter sido distorcida. E hoje, estes dois episódios, americano e brasileiro, no auge dos anos 2020 estão registrados em imagens com cores, movimento, som, suor, dor e sangue. Está tudo ali. E essas imagens de quem não pode respirar nos sufocam.

São registros que despertam em nossos sentidos o chocante cruzamento do passado com a história real de dois homens negros que estão sem ar, assim como muitos dos seus antepassados que também foram sufocados pela escravidão, pela imposição da religião, pelo racismo. Floyd diz “não posso respirar”, enquanto João Alberto implora à esposa, que assiste à sua tortura, petrificada: “por favor, me ajude”. Estes dois pedidos de socorro atingem o âmago de nossa vivência humana.

A violência das margens que nos aprisionam

Quem pensamos que somos e quem dizemos ser para o resto do mundo? Um país feito de misturas e com liberdade de ir e vir? Contém ironia tal questionamento. Vidas seriam salvas se não tivéssemos um racismo tão presente e latente na formação da nossa identidade social. E se vocês me perguntassem: até que ponto a religião contribui para analisar tais elementos? Eu responderia: no princípio do amor ao próximo, que não foi levado em conta.

Sim, o amor está presente em todas as religiões, assim como no Ubuntu africano ou no Batuque gauchesco. Ou o princípio de cuidar, de ouvir, de não revidar e oferecer a outra face a quem nos dá um primeiro tapa, conforme aponta o Evangelho.

Ora, já dizia o famoso poeta alemão, Bertolt Brecht: “de um rio que tudo arrasta, se diz que é violento. Mas, ninguém chama de violentas as margens que o aprisionam”. O que Nego Beto escutou para precisar desferir um soco num dos seguranças, antes de ser espancado? O que precisou ser calado, imobilizado, sufocado a partir de então? 

Tudo o que podemos responder é: sendo João Alberto homem brincalhão, mesmo com temperamento “estourado”, com ficha criminal extensa por ter cometido atos inglórios e lamentáveis, não precisava ter pago por seus erros com a vida. O extremismo da tortura que sofreu não justifica absolutamente nada. Foi desproporcional, foi desumano. Violência jamais se paga com violência e morte.  

O batuque que agora ressoa do alto

As palavras de pedido de socorro de George Floyd e de João Alberto Silveira Freitas continuam a ressoar em meus ouvidos; elas atuam como uma voz profética da dor e da traumatização que vem dos povos afrodescendentes repetidas vezes. São homens que clamam pela vida, mas não são escutados. Tivessem o tom da pele diferente, teriam sido ouvidos e aquelas cenas de tortura interrompidas?

Não há justiça social, muito menos a justiça do Reino tanto debatida pela Teologia, se não nos esforçamos para mudar costumes e práticas que oprimem e escravizam os outros, que “não os deixam respirar”, nem falar, nem fazer festa, nem culto. 

A Justiça do Reino visa proteger os direitos dos outros. Protestar contra tudo o que destrói a dignidade humana é o verdadeiro papel da Teologia no campo da inclusão: precisamos urgentemente de uma sociedade onde todos sejam bem-vindos, onde todos se sintam realmente bem-vindos e onde a diversidade seja tão natural quanto respirar.

E a cultura religiosa deve possibilitar esses novos ares. Neste domingo, Nego Beto toca tambores lá do céu, em tom afro, tom de festa, tom de encontro, tom de perdão. Consigo sentir cada batuque no meu coração. E se o tom da pele não te impedir de ouvir, por favor, ouça!

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 * Ana Beatriz Dias Pinto, é comentarista convidada do blog e nos traz reflexões sobre temas atuais e contextualizados sob a ótica do universo religioso, de maneira gratuíta e sem vínculo empregatício, oportunizando seu saber e experiência no tema de Teologia e Sociedade para alargar nossa compreensão do Sagrado e suas interseções.