Recém saímos de uma eleição de prefeitos e vereadores, e nela ficou demonstrado mais uma vez que votamos ou com a cabeça, ou com o coração, ou com o fígado. Eleitores “cabeça” definem seu voto racionalmente, escolhendo candidatos que lhes pareçam mais competentes, honestos ou adequados ao cargo que pretendem. Os que votam com o coração escolhem postulantes que lhes despertem maior simpatia, pessoal ou de ideias, ou que sejam amigos ou parentes. Os eleitores pelo fígado constituem um grupo que infelizmente está em expansão, não escolhem candidatos que os agradem, votam contra os que os desagradam, seja por ideologia, discurso ou biografia, votam por ódio.
Um contingente em crescimento quase exponencial é o dos “ausentes”, que votam branco, anulam o voto ou simplesmente não comparecem. Para as gerações que viveram na ditadura militar, quando a possibilidade de votar para presidente, governador ou prefeito era sonho distante, isso parece um “desperdício de cidadania”, mas é compreensível em muitos casos dada a baixa qualidade moral, ideológica ou política de muitos candidatos. Embora a palavra cordialidade tenha sua raiz em coração, orientar-se mais pelo coração do que pela razão pode não ser exatamente uma qualidade, pois amor, fanatismo, ódio, raiva também tem essa origem.
Chegamos a nos apavorar quando constatamos o nível de violência a que chegaram as relações pessoais. Torcidas de futebol há muito deixaram de conviver “esportivamente”, entrando em verdadeiras batalhas em que vale tudo até armas de fogo e resultam amiúde em mortes e ferimentos graves. A política inverte a máxima do militar prussiano Carl von Clausewitz de que “a guerra é a continuação da política por outros meios” tornando-se uma guerra por quaisquer meios. Tudo, de acidentes de trânsito a disputas de Escolas de Samba, gera conflitos incontroláveis.
Sérgio Buarque de Holanda, em seu livro “Raízes do Brasil”, escrito em 1936, afirmou que o brasileiro é um “homem cordial”, e também que “nossa forma ordinária de convívio social é no fundo, justamente o contrário da polidez”.
Nas redes sociais assistimos hoje à quase ausência total de polidez, de senso democrático, e muito, muito desrespeito; mostrando bem a cultura escravocrata internalizada na forma de discriminação e preconceito contra negros, nordestinos, mulheres, minorias e todos aqueles que contrariam.
Mostramos toda a agressividade de nossa cordialidade nos Twitters (atual X), Instagrans, Facebooks e outras redes sociais, nossas contradições e ambiguidades, luz e sombra, racionalidade e irracionalidade.
Equilibrar estas forças nestes meses de campanha eleitoral mostrou quem somos por dentro; cordiais mas no duplo sentido: cheios de raiva e de indignação e ao mesmo tempo de exaltação positiva e de militância séria e autocontrolada.
A cooperação para o bem comum, respeito ao espaço da oposição inteligente, acolhimento das diferentes opções políticas, tudo isso seria indispensável para enfrentarmos os graves problemas internos – fome, miséria, falta de segurança – e externos – guerras entre vários países que nos impactam, devastações, desastres naturais ou provocados pelo homem.
Os brasileiros são conhecidos como um povo alegre, musical, amistoso, mas ao mesmo tempo com certa frequência matamos turistas e entramos em confrontos absurdos e perigosos. Estamos também nos tornando conhecidos nos rankings mundiais de depressão, ansiedade e doenças relacionadas ao trabalho. Parece haver alguma correlação entre essas doenças nos países que mais passam tempo nas redes sociais, mas parecemos incapazes de nos engajar numa mudança cultural.
Muitos pesquisadores da área educacional comprovam que aprender é cansativo, nada simples e traz uma tendência de fugir daquilo que é novo, pois provoca desconforto. No entanto, o resultado de adquirirmos novos conhecimentos costuma compensar – e muito – este cansaço.
Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.