O ditado popular afirma que a História é contada pelos vencedores, vencidos não tem direito a voz, e são condenados à lixeira da civilização.
No Brasil temos a situação peculiar em que, na recente ditadura, militares voltaram aos quartéis clamando à sociedade o esquecimento, e não apenas no episódio do general João Figueiredo, ao deixar o poder: “Me esqueçam!”, enquanto os vencidos lutaram pela memória.
Os vencedores queriam esquecer, enquanto os vencidos pretendiam lembrar; e hoje assistimos estarrecidos a criação de novas memórias, falsas até a medula, narrativas de uma época de ouro acontecida numa época mítica, num passado glorioso cheio de benesses que nunca aconteceram.
O pedido de esquecimento parece ter sido providencial para que pudéssemos criar narrativas, como a atitude pretensamente boa daqueles que queimaram documentos referentes ao período escravocrata, teoricamente para “tirar esta nódoa” de nosso passado, mas verdadeiramente para apagar possibilidades de solicitações de reparações, para criar uma magia de um povo bondoso que jamais se envolveu em atrocidades, e no meio destruindo registros de laços familiares, procedências, acontecimentos.
Um bom exemplo foi a descoberta de uma carta no Arquivo Público do Piauí alguns anos atrás, escrita por Esperança Garcia, uma mulher escravizada no século 18, que relatava seus sofrimentos e pedia justiça. Uma preciosidade histórica, uma denúncia de maus tratos feita ao governador daquele período, uma espécie de habeas corpus registrado e homenageado pela Ordem dos Advogados Brasil recentemente. Bem, este documento simplesmente desapareceu.
Grande parte dos problemas enfrentados na área da educação e da cultura tem características comuns, em que se inclui a concepção do objetivo maior de, através dos bens culturais preservados, utilizar a memória, o testemunho da existência social, nos seus aspectos econômico, político e cultural, já que o tempo e sua continuidade modificam e alteram a sobrevivência humana pelo conhecimento da realidade e da memória preservada.
A necessidade de constituição de memórias no processo civilizacional humano foi o que propiciou o desenvolvimento dos registros históricos, dos desenhos, das pinturas e gravuras, o aprimoramento das linguagens e sua representação escrita, gerando os contos orais e os manuscritos. Assim, a percepção do mundo, as crenças e mitos, os valores morais, o acúmulo de conhecimento e a cultura puderam ser registrados e preservados.
Comunicação e preservação permitiram estabilidade social e cultural, pois existe sim uma distinção entre fato e ficção, ao contrário da tendência atual de criação de falsas lembranças e histórias da carochinha de um passado grande e maravilhoso ao qual devemos retornar.
Não é outra a narrativa base da campanha vitoriosa de Trump à presidência americana, fazer a América grande de novo implicaria em retornar no tempo, ao tempo em que americanos eram recebidos em toda parte como salvadores e portadores do sempre bem-vindo dólar. Sabe-se que a realidade era um tanto menos cor de rosa e o Departamento de Estado patrocinava ditaduras sangrentas e guerras idem para preservar o status quo. A prosperidade americana escorava-se em relações comerciais que exploravam diversas outras nações e em tributações injustas às importações contrariando sua própria filosofia dita liberal.
Um truísmo até ingênuo é que “o passado passou”, mas não é assim que muitos o veem, idealizam os acontecimentos passados como uma homenagem ao tempo em que o viveram, quando eram jovens e a vida era risonha e franca. Exemplo é o de pessoas que viveram em Londres na segunda guerra, quando os nazistas bombardeavam a cidade quase diariamente; se essas pessoas eram crianças nesse tempo e não sofreram consequências realmente trágicas, tendem a recordar o bom tempo. Não da guerra, mas da infância.
Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.