Me gustas cuando callas porque estás como ausente

Um dos mais belos versos do poeta chileno Pablo Neruda está sendo alvo da praga do cancelamento; os patrulheiros entendem que ele está afirmando que gosta da pessoa amada quando cala a boca, ou algo do gênero.

Traduzir literatura é muito mais difícil do que parece, não basta recorrer ao Google e trocar as palavras pelo que seria seu equivalente na língua destino. Em poesia a dificuldade se multiplica: além de entender perfeitamente a intenção do autor é essencial dominar particularidades de seu idioma, conhecer metáforas da cultura originaria do texto, e ter sensibilidade para aquilo que o poema contém acima do que se gostaria que contivesse.

Mesmo em um idioma supostamente tão “parecido” com o nosso como o espanhol há palavras e significados totalmente diferentes do que seriam em português.

A tradução, dita literal, do texto de Neruda seria “Gosto quando (você) se cala e fica como que ausente”. Conhecendo um pouco a obra do poeta, e com um certo bom senso, entende-se: “Gosto quando (você) fica em silêncio e introspectiva”; é impossível que se possa achar que gostar da pessoa amada também quando não está interagindo conosco seja ofensivo, machismo ou o pecado da moda que se queira imputar ao poema.

Pablo Neruda está sendo acusado de ter cometido estupro e pedofilia. Não há provas disso ainda e a questão está aberta, se aconteceu sua memória sofre um descenso moral imenso, mas sua obra permanece uma das maiores da literatura latino-americana.

Uma poesia não pode ser compreendida apenas como palavras encadeadas, a análise deve ultrapassar os limites de uma simples interpretação de texto, no que por sinal nós brasileiros costumamos ser bastante fracos – que o digam as dificuldades enfrentadas por professores em todos os níveis de ensino – pois os elementos de uma poética são sempre percursos de compreensão para a realidade de seu entorno.

O texto de uma poesia costuma ser especial, o seu discurso e características mostram a visão de mundo do autor, sempre atrelada aos aspectos sociais e culturais de uma época, gênero e estilo. Analisar a forma de expressar-se de um grande poeta é também entender de onde e em que sociedade vivia, suas estruturas e verdades, seus valores, quase como se fossem a trilha em que se chega a uma certa realidade histórica. O processo  de criação, produção, circulação e recepção da poesia está sempre circunscrito aos códigos vigentes do universo da criação da cultura popular de determinado período, suas formas de sentir, refletir e ver o mundo.

Não havendo pobreza estética, é indispensável não permitir que interesses comerciais ou ideológicos impeçam que possamos apreciar uma obra de arte, mesmo que no momento atual outras compreensões tenham havido, talvez até como consequência desta obra mais antiga, e já não façam sentido as mesmas formas de expressão.

A cultura está num período delicado, principalmente quanto ao que já foi feito em termos de literatura, poesia, teatro, artes plásticas; há uma quase histeria em procurar sintomas de maldade, machismo, autoritarismo, racismo, nas obras anteriores aos tempos ditos politicamente corretos que vivemos.

É afirmação de muitos que Shakespeare teria sido antissemita por retratar o judeu Shylock na peça “O mercador de Veneza” como um crápula capaz de exigir “uma libra de carne” do comerciante Antônio em pagamento de uma dívida. É, certamente, algo cruel e bárbaro, mas o contexto da peça e da época o tornam mais compreensível: o judeu, como todos os judeus de seu tempo, era constantemente humilhado e agredido pelos venezianos, principalmente Antônio, vilipendiado por emprestar dinheiro a juros, ao ter uma oportunidade de desforra faz uso dela, com mau resultado para si mesmo. Shakespeare não faz mais do que expor o “espirito do tempo”, era assim que a sociedade da época via os judeus. E Shylock ganha um “lugar de fala” poderoso, expondo a sua condição e revolta e a dos outros judeus de forma até hoje válida para todos os discriminados: “Sou um judeu. Então um judeu não possui olhos? Um judeu não possui mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afeições, paixões? Não é alimentado pelos mesmos alimentos, ferido com as mesmas armas, sujeito às mesmas doenças, curado pelos mesmos meios, aquecido e esfriado pelo mesmo verão e pelo mesmo inverno que um cristão? Se nos picais, não sangramos? Se nos fazeis cócegas, não rimos? Se nos envenenais, não morremos? E se vós nos ultrajais, não nos vingamos?

Um antissemita não escreveria isso.

Num momento em que cultura e conhecimento acadêmico tem sido hostilizados, em que muitas pessoas perderam o interesse em diminuir sua ignorância, pelo contrário ostentando-a com orgulho como se fosse qualidade positiva e não aquilo que se deva eliminar, torna-se muito mais importante não destruir o que não se entende. É preciso tentar entender antes de não aceitar liminarmente.

 

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.