luana rocha
Luana Rocha é nutricionista e pesquisadora do GEPPAAS – Grupo de Estudos, Pesquisa e Práticas em Ambiente Alimentar e Saúde da UFMG, uma das autoras de recente pesquisa sobre a percepção dos residentes de favelas brasileiras sobre o ambiente alimentar. Crédito: Luana Lara Rocha

Confira a íntegra da entrevista com Luana Rocha, autora de um estudo fundamental para entender a importância da conscientização e do acesso à informação sobre a alimentação

O Festival FIRMA, que ocorre dias 6 e 7 de abril, conversou com Luana Lara Rocha, nutricionista e pesquisadora do GEPPAAS – Grupo de Estudos, Pesquisa e Práticas em Ambiente Alimentar e Saúde da UFMG. Luana é uma das autoras de recente pesquisa sobre a percepção dos residentes de favelas brasileiras sobre o ambiente alimentar, repercutida nacionalmente no último mês de março nos principais veículos de imprensa do país. O estudo é fundamental para entender a importância da conscientização e do acesso à informação sobre a alimentação, que há muito tempo deixou de ser encarada apenas como a ingestão de nutrientes: é também cultura, acessibilidade e políticas públicas.

A proposta do FIRMA, evento que reúne graffiti, música e poesia, é fortalecer estas manifestações na cidade e valorizar nossa cultura alimentar. O festival reúne mais de 70 artistas que vão se unir para compor um mural no Colégio Estadual Prof.ª Izabel Lopes Santos Souza (Rua Rosa Tortato, 500 – Pinheirinho). O evento é aberto ao público e conta com programação cultural e almoço gratuito.

Os trechos a seguir foram extraídos e adaptados para a versão escrita de entrevista realizada no dia 2 de abril de 2024 no programa Vamos à Luta, da Rádio Cultura AM930 de Curitiba – Vamos à Luta – Mesa Farta e Ideia Forte no FIRMA!

Para reforçar a conexão entre arte, cultura e a alimentação, segue abaixo entrevista, que o blogo Arte ao Redor publica na íntegra.


O Festival Firma faz uma conexão pouco usual entre arte, cultura e alimentação. Como
você avalia essa conexão e, especificamente, essa iniciativa?


Tudo isso (cultura e alimentação) está junto e significa alimentação saudável, principalmente se pensarmos no Guia Alimentar para a População Brasileira. Ele foi publicado em 2014 e trouxe uma nova visão – comparado aos guias anteriores -, sobre alimentação saudável. Então a gente não vê mais alimentação saudável como nutriente. Exemplo: “Eu tenho que comer carne porque é proteína. Eu tenho que comer arroz, feijão, porque é carboidrato”. Então a gente tira um pouco essa visão que a gente chama de “nutricionismo”, focado nos nutrientes para nutrir o corpo como se a gente fosse máquina, e passamos a ver alimentação como uma questão de cultura, uma questão de união entre as pessoas. Uma questão também de se alimentar de forma saudável, e não de apenas se alimentar. Quando mencionei esse guia, o Guia Alimentar da População Brasileira, ele traz que os alimentos ultraprocessados são esses elementos que a gente chama de “formulações industriais”, que não vemos quase nada de alimento de verdade: nem frutas, nem verduras, cereais, legumes. A gente vê mais corantes, aromatizantes, saborizantes, tudo isso adicionado de açúcar, gordura. Isso para dar sabor, para dar cor, para chamar a atenção das pessoas a consumirem esses alimentos. E quando a gente vai olhar o Guia, ele fala pra gente evitar o consumo desses alimentos. E o que que ele fala pra gente sobre alimentação saudável?

Alimentação saudável é baseada em alimentos in natura, que são aqueles como a fruta que a gente colhe diretamente do pé, o legume, a verdura, arroz, feijão. São alimentos que passam por processo de beneficiamento mínimo, que é de polimento, tirar casca. Então isso realmente é alimentação saudável, que está aliada ao hábito de cozinhar. São essas práticas que o guia traz como positivas, que influenciam a alimentação saudável. Na prática, o hábito de cozinhar inclui a gente separar um tempo para nos organizar, para a gente conseguir cozinhar os alimentos. Isso ajuda a gente a consumir mais alimentos saudáveis. Outra prática é a da comensalidade. O que é comensalidade? É esse espaço que a gente consome e compartilha alimentos com nossos amigos, com nossos parentes. Não estávamos falando do Festival FIRMA? É um ótimo espaço pra gente praticar a comensalidade. A gente tem a culinária, que é uma expressão da nossa cultura. O Brasil é um um país de dimensões continentais, eu estou no sudeste, em Belo Horizonte, e aqui temos o Feijão Tropeiro, nosso Pão de Queijo, nosso Frango com Quiabo.

Quando a gente vai pro Nordeste, temos o Cuscuz, temos a Carne de Sol com Nata, a carne seca. No norte a gente tem o açaí. Somos um país gigante e uma forma de expressar a nossa cultura é a alimentação. Temos que valorizar isso cada vez mais. Falei com você mais cedo e fiquei muito feliz de ver esse evento, o FIRMA, porque ele une a arte com arte! Porque não deixa de ser arte a culinária, vocês preparando alimentos saudáveis. Eu vi as fotos da edição anterior com alimentos saudáveis, alimentos de “verdade” – como a gente chama -, que estão sendo ali preparados, exercendo o hábito de cozinhar e compartilhar com as pessoas – isso para falar um pouquinho sobre o que eu penso de cultura e alimentação.


A segunda edição do Festival Firma vai acontecer em uma escola pública. Sabemos que muitas crianças têm na escola pública uma das fontes principais de sua alimentação. Pesquisando sobre o tema, nos deparamos com um estudo em que você é uma das autoras, que promove um comparativo alimentar entre as escolas públicas e as escolas privadas. Quais as conclusões desse seu estudo?


Eu estudo esse tema desde 2019, estudando o ambiente alimentar escolar. Estou envolvida em diversas ações sobre esse tema. Quando a gente fala de escolas públicas e privadas, o grande diferencial é o PNAE, o Programa Nacional de Alimentação Escolar. A gente não tem esse programa nas escolas privadas. E esse é um dos atrativo das escolas públicas. O PNAE está presente promovendo alimentos saudáveis para as crianças em uma oferta regular, todo dia tem alimentos para essas crianças, alimentos
saudáveis. Temos várias regulamentações do FNDE para ter acesso a alimentos saudáveis nas escolas, através também da agricultura familiar – 30% no mínimo tem que ser da agricultura familiar. É proibido alimentos ultraprocessados, não pode comprar refrigerante, por exemplo, com o dinheiro do que vem do FNDE nas escolas. Isso é muito legal porque é um espaço que a gente também pode utilizar para promover alimentação saudável no ambiente escolar. Não tem uma lei Nacional falando que não pode vender alimentos processados na escola, alimentos não saudáveis. Não temos isso de forma nacional, temos isso de forma local, ou em estado ou em município. Um exemplo é Niterói, que aprovou uma lei proibindo alimentos ultraprocessados dentro das escolas. Ou seja, pode ter venda, mas não pode vender alimentos ultraprocessados. Já Belo Horizonte não tem essa questão dos ultraprocessado, mas as escolas municipais que tem o PNAE não podem ter cantina de alimentos, o que já favorece o consumo de alimentos saudáveis pelo PNAE. Toda essa questão acaba trazendo resultados que são: a existência de cantinas com venda de alimentos em escolas públicas atrapalha o consumo dos alimentos saudáveis do PNAE. Mas quando a gente compara com as escolas privadas, os alunos das escolas públicas consomem menos alimentos nas cantinas porque elas têm o PNAE. Então apesar de ter em alguns locais com venda de alimentos nas escolas públicas, elas já estão à um passo à frente das escolas privadas, por conta do PNAE. Na pandemia vimos que o PNAE fez falta para a alimentação das crianças, tanto é que depois a gente teve os governos locais direcionando cestas básicas, direcionando cartão alimentação, porque isso faz diferença na alimentação dessas crianças. Tem crianças que passam cerca de dois terços do dia dentro nas escolas, dois terços da semana dentro das escolas, elas podem consumir até 50% da sua alimentação diária nesse espaço. Isso considerando o período regular, se a gente for considerar o período integral, isso pode significar até 70% da alimentação da criança. Então a escola é um local muito importante para a alimentação, para a formação de hábitos também. A criança vai passar 11 anos da vida dela no ambiente escolar, então é um ambiente propício para aprendizagem, é um ambiente propício pra gente ir lá falar sobre alimentação saudável. Não só nós nutricionistas, mas também os professores falarem de alimentação saudável, as cantineiras, as merendeiras, as produtoras de alimentos que estão lá produzindo alimentos, falar de alimentação saudável. E isso é muito bom que elas conseguem falar com carinho que elas estão ali produzindo os alimentos, então tem essa questão afetiva também com as crianças. A escola tem um papel central na vida das crianças e adolescentes, por isso é muito importante a gente promover alimentação saudável nesses espaços e falar de alimentação saudável, proibir ultraprocessados, proibir propaganda. Às vezes a gente vê freezer de refrigerante dentro de uma escola, você está promovendo o consumo de alimento não saudável. Podemos estar oferecendo para a criança um problema que pode causar um prejuízo na vida dela, um prejuízo duradouro, que pode levar à uma vida toda com uma doença crônica. Temos que cuidar muito bem desse espaço, promover os alimentos saudáveis.


Acompanhamos a repercussão de sua última pesquisa publicada em vários veículos de
imprensa nacional, intitulado “Percepção dos residentes de favelas brasileiras sobre o
ambiente alimentar: um estudo qualitativo”. Como o ambiente pode afetar a
alimentação das pessoas?


Primeiramente a gente chegou nessa ideia porque eu estou fazendo meu doutorado em Saúde Pública aqui na UFMG, trabalho com Ambiente Alimentar. Aí me foi posto um desafio: estudar o Ambiente Alimentar de regiões vulneráveis. Quando a gente vai estudar o ambiente alimentar, geralmente o foco é em regiões de alta renda ou o estudo da cidade como um todo. Nunca ninguém parou para olhar para as regiões vulneráveis. Então me colocaram este desafio e a gente bolou o projeto do Ambiente Alimentar de vilas e favelas, estudar mais a fundo esses ambientes. Só que não é legal a gente chegar num espaço onde eu não não pertenço e me impor, ou supor coisas sendo que eu não vivo nesse espaço. Tivemos a ideia de um grupo focal, de fazer um grupo focal com residentes de favelas de todo o Brasil. Estávamos ainda na pandemia, retornando às atividades presenciais e tivemos essa ideia de fazer algo online para conversar com essas pessoas, para elas trazerem um pouco dessa visão delas. Fomos convidando moradores de favelas de todo o Brasil, de todas as regiões. Convidamos várias pessoas, 27 confirmaram presença, no final acabaram participando 10 pessoas nos grupos focais. Contamos com pessoas de origem indígena, a maioria das pessoas do nosso estudo são pessoas pretas e pardas, muitas mulheres também participaram do nosso estudo. Perguntamos várias coisas: o que elas entendem por alimentação saudável? O que elas entendem por alimentação que não é saudável? Como é o acesso aos alimentos na área de favelas? Onde elas compram alimentos? O que elas enxergam como dificultadores e facilitadores? A gente fez uma uma pesquisa ampla para tentar entender como é que elas enxergam esse ambiente que elas vivem. E o que que a gente encontrou? Que para elas definirem o que é alimentação saudável, elas sentem falta de informação. Elas trazem coisas que saem na mídia, por exemplo, “alimentação saudável é uma alimentação com proteína, carboidrato”, uma visão bem reducionista da alimentação, que a gente vê bastante na mídia sobre os alimentos. Elas também relataram a questão da disponibilidade dos alimentos. Não que não tenha alimentos na favela. Temos alimentos na favela, só que por vezes é maior a disponibilidade de alimentos não-saudáveis, alimentos ultraprocessados, tendo em vista que são mais fáceis de serem vendidos e disponibilizados, porque não precisa de condição específica de armazenamento, o prazo de validade é maior, a conveniência é maior. Em muitos casos a pessoa trabalha o dia todo, sai de casa às 6h para chegar no serviço às 8h da manhã, para voltar depois para casa às 20h da noite, porque tem a questão do transporte público que às vezes é difícil em certos horários, demora a chegar, principalmente porque é às vezes as periferias e favelas estão localizadas em locais mais afastados dos centros urbanos. Tem toda essa questão da locomoção dificultar o acesso a alimentos saudáveis. Os estabelecimentos que vendem alimentos que por vezes fecham às 18h, 19h da noite e a pessoa chega às 20h em casa. Como é que ela compra alimento? Ou se ela vai comprar perto do trabalho dela, porque ela está ali naquele tempo e consegue comprar alimentos. Mas onde ela vai armazenar? Será que ela consegue comprar uma quantidade adequada para a família dela? E o preparo desses alimentos, se a pessoa chega cansada em casa e tem filho pra cuidar, casa para arrumar. Será que ela vai pensar realmente no preparo de alimentos? É uma questão que tem que ter informação e planejamento para a gente conseguir lidar. “Ah, vou preparar talvez no meu final de semana, congelar para consumir durante a semana”. Mas é preciso ter a informação de qual alimento a gente pode congelar, qual é o preparo necessário antes do congelamento. É uma questão de informação e também de acesso (aos alimentos). As pessoas até questionam, dizendo “ah mas na favela não tem açougue? Não tem Hortifruti? Não tem feira?”. Pode até ter pode até ter, mas a questão é a qualidade desses alimentos, a questão é o preço desses alimentos. A gente não pode falar que nas favelas esses alimentos são baratos. As pessoas de favelas, e todo mundo, na verdade, precisa se alimentar de forma mais saudável. Precisamos fazer com que esses alimentos saudáveis cheguem nas favelas e cheguem com qualidade, com preço adequado.


O exemplo que eu gosto de dar é um exemplo daqui de Belo Horizonte, onde temos os equipamentos públicos de segurança alimentar e nutricional. São equipamentos que disponibilizam alimentos saudáveis, de pessoas que residem e produzem aqui na região metropolitana de Belo Horizonte – o que é legal porque também fomenta economia local aqui e que faz chegar alimentos saudáveis para a população que precisa, na teoria. Mas quando a gente vai fazer esses estudos, a gente vê que as essas feiras, esses
equipamentos públicos de segurança alimentar nacional, eles são localizados mais em centros urbanos em regiões que têm maior circulação de pessoas. Então esse é o grande problema, um programa muito potente, muito legal, só que ele não chega para quem deveria chegar. Questionado o problema, a resposta é que é difícil colocar esses equipamentos nesses espaços, porque tem a questão da segurança, os comerciantes, os empresários, feirantes, não se sentem seguros de estar nesse espaço comercializando. Mas essa é só uma das várias formas que a gente tem. Podemos também promover a agricultura local promovendo hortas urbanas, a própria Associação de Moradores pode eh cuidar desse espaço Cuidar dessa horta urbana nesses locais. Podemos promover a economia local incentivando os próprios comerciantes ali da favela a comercializar alimentos saudáveis, dando isenção de postos ou algo
semelhante, existem estratégias a serem feitas. A questão da segurança, inclusive foi algo relatado pelos participantes, atrapalha o consumo de alimentos saudáveis. Porque temos que pensar na questão da locomoção dificultada por questões de segurança: tiroteio, briga entre facções – tudo isso atrapalha
tanto a locomoção das pessoas que residem em favelas para chegar nos espaços para comprar comida. Mas isso também afeta o psicológico da pessoa. Uma das participantes do estudo, relatou que nesse ela se sente mais ansiosa e não consegue comer. É toda uma questão complexa que envolve esse ambiente das favelas, uma questão de disponibilidade, de segurança, uma questão de renda também. Temos
que pensar não só em disponibilizar alimento saudável, mas a pessoa também tem que ter dinheiro para comprar esse alimento saudável.

O programa Bolsa Família é um programa muito legal, que pode favorecer as pessoas a aumentarem a renda e comprar alimentos. Outra questão que a gente tem que pensar em regiões de favelas é o transporte. Vemos muito que o transporte público chega somente na borda da favela, para entrar dentro da favela muitas vezes é necessário o mototáxi, a van, transportes alternativos. O supermercado, onde as coisas são mais baratas, está localizado na borda da favela. Para a pessoa subir a favela com a sacola ela vai lá e paga uma van ou um mototáxi para levar ela até a casa dela. Então temos que pensar em todas essas questões quando falamos sobre o acesso a alimentos nas áreas de favelas.

FIRMA

O FESTIVAL FIRMA 2ª Edição – Mesa Farta, Ideia Forte, ocorre dias 6 e 7 de Abril de 2024 – das 9h às 17h. Colégio Izabel Lopes Santos Souza (Rua Rosa Tortato, 500 – Pinheirinho). Evento gratuito. Sugestão: Doação de 2kg de alimentos não perecível por participante.