“O trabalho dignifica o homem (e a mulher, claro)”. Desde que foi decretada a praga bíblica, que determina que ganharemos nosso sustento com o suor de nosso rosto, o trabalho que no limite é o conjunto de atividades de plantar e colher, minerar, construir casas e templos, fazer fretes, e atualmente têm modalidades talvez mais sofisticadas, de negociar fundos de investimento, divulgar notícias, realizar cirurgias, e até fazer política, entre outras, assumiu dimensão quase sagrada. É evidente que o trabalho é essencial, os frutos não tombam das árvores para nossas geladeiras, as geladeiras não se produzirão sozinhas, e assim por diante.
O problema, como em quase tudo na sociedade pós industrial, está na desmedida; de atividade necessária e até prazerosa em muitos casos, trabalho tornou-se o centro único e absoluto da vida dos indivíduos, define até mesmo quem é a pessoa: em interações sociais a pergunta sobre o que se faz antecede e até substitui aquela sobre quem se é. Sou engenheiro, executivo, ladrão de carros, cirurgião plástico… são informações interessantes mas não dizem o que a pessoa pensa, se lê e o que lê, de que filmes gosta, qual sua preferência política; quase como se tudo isso decorresse da atividade profissional numa simplificação até mesmo preconceituosa, o engenheiro não teria interesse em cultivo de rosas, o executivo não pensa em nada senão em “resultados”, o ladrão estaria de olho em nosso carro, o cirurgião plástico veria apenas o formato de nosso nariz.
São comuns os casos em que quando o trabalhador se aposenta entra em depressão, pois perdeu mais do que parte de sua renda, perdeu a própria identidade.
O Brasil atravessou crises de inflação galopante que nos fizeram perder a confiança no dinheiro, tivemos mais de oito moedas diferentes em menos de dez anos e cada uma com valor de face imensamente maior que a anterior e valor real muito menor. A estabilização obtida com o Plano Real devolveu em parte essa confiança, mas os surtos periódicos de carestia nos deixam atentos; não é de surpreender que lutemos para aumentar nossa renda praticamente o tempo todo, a renda é corroída rapidamente. E a maioria das pessoas obtém maior renda com mais trabalho, além até do que seria física e mentalmente saudável. E isso se repete em países de sociedade e economia mais estáveis do que as nossas.
O termo “Karoshi” é utilizado no Japão para definir “morte por excesso de trabalho”, é descrito na literatura médica como um quadro clínico extremo (ligado ao estresse ocupacional), e neste país existem sérias estatísticas sobre o assunto, que começou a despertar preocupação também em outros países.
É visível que atualmente as pessoas passam uma parte considerável de seus tempos no trabalho, e a vida educacional em muitos casos parece apenas dedicar-se a preparar pessoas para esta etapa. Contrariamente ao bom senso, que pede uma educação mais inclusiva e preparatória para a compreensão do mundo, para domínio da carga de conhecimento acumulada pelos seres humanos ao longo de todo o progresso civilizacional, e desenvolvimento das habilidades necessárias aos inter-relacionamentos, do qual se beneficiariam inclusive as empresas no médio prazo, educar para o mercado é uma visão utilitária do processo educacional, que forma pessoas apenas para o trabalho e não para a vida. Visão curta e imediatista, que não contempla a formação completa de alguém solidário, cidadão.
O trabalho cumpre um papel central na vida de todos, o que é compreensível pois uma fonte de renda para sobrevivência é essencial, porém não constituiu um hábito saudável organizar toda a vida em torno das atividades profissionais, em prejuízo das suas próprias vidas e da dos seus familiares. O termo workaholismo é utilizado para descrever este envolvimento excessivo com o trabalho.
A vida centrada no trabalho parece ser a regra nas empresas modernas e o único caminho para alcançar sucesso na carreira, como se renunciar à vida pessoal aumentando da carga de atividades e a quantidade de horas que se consome nelas fossem indícios de maior envolvimento com a organização e denotasse uma pessoa melhor.
E assim aparece o que chamamos burnout, uma síndrome que surge como consequência de uma exposição prolongada a fatores estressantes relacionados com o trabalho, como a exaustão emocional, sentimento de esgotamento, mas também o cinismo na dimensão relacional, respostas negativas, de indiferença ou excessivamente desligadas principalmente dos colegas. Esta síndrome traz problemas graves de saúde não apenas no plano pessoal, como também para a própria organização.
Isso é grave quando também atinge professores, cuja função principal é orientar os demais no atingimento de uma vida mais plena, alegre e participativa.
Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.