Desde que a escrita foi criada, mesmo em suas formas mais rudimentares, além dos benefícios óbvios como passagem da experiência humana de uma geração para outra de forma mais eficiente, a possibilidade de definir recursos em estoque e transmitir informações urgentes sobre ataques inimigos e muitas outras, uma vantagem adicional seguramente foi passar do desconhecimento sobre tudo para uma maior transparência da comunidade com relação aos seus procedimentos e cultura.

Se por um lado a alfabetização introduziu a potencialidade do conhecimento solitário, por favorecer silêncio, a vida interior, aperfeiçoamento da linguagem, expansão do comércio e relacionamentos sociais, permite também hoje uma sociedade absolutamente transparente, imersa numa cultura digital mundial, e muda de forma assombrosa nossa civilização.

A ética que permitiu a privacidade absoluta, parece agora exigir o translúcido, e mostra que cada vez que a tecnologia de base muda, a sociedade muda, como já afirmou Manuel Castells: “A comunicação consciente e significativa é o que nos torna humanos. Por isso, qualquer transformação importante na tecnologia e na organização da comunicação é de grande relevância para a mudança social”.

Tudo parece indicar que o ser humano muda em função de suas tecnologias da linguagem, e não por coincidência nos estudos sobre o aparecimento da inteligência humana, ela aparece sempre atrelada à linguagem, mesmo que esta seja a de sinais.

Mas o direito à privacidade é sempre associado ao “o direito de ser deixado em paz”, coisa que apenas aqueles que já a tiveram seriamente violada entendem em toda a sua extensão: dilemas éticos e legais estão envolvidos nestes processos, muitos deles atualmente em tribunais.

O conhecimento é hoje apoiado em algoritmos e modelagens computacionais complexas, envolvendo interesses sociais, econômicos e principalmente políticos.  Dados pessoais, obtidos nas diversas redes de uso diário por praticamente toda a população são mercantilizados no ambiente virtual, e a extração desses dados, de forma silenciosa acelera a economia da informação.

O capital, anteriormente constituído por letras de câmbio, ações, títulos, propriedades, é agora também representado por informações. A comunicação tem funcionado como braço do enriquecimento de muitos, e a tecnologia se torna parte integrante da moderna política econômica, pois usuários são o produto e a fonte de lucros. A constatação hoje é de que indivíduos são manipulados na liberdade de escolha, privacidades são invadidas e a enorme maré de Fake News têm colocado direitos e democracia em risco.

A invenção da escrita permitiu a expansão das informações, e “informação é poder”, sempre foi. Saber e poder transmitir à distância movimentos de inimigos, esconderijos da caça, planos dos concorrentes, perspectivas do clima, tudo teve e tem grande importância para a sobrevivência e para a conquista e manutenção do poder. Desde a antiguidade os reis e comandantes de exércitos procuraram manter redes de informações junto às outras nações ou cidades, com isso obtendo vantagens para seus propósitos comerciais ou bélicos.

E a manipulação dos dados transmitidos sempre foi arma de ataque ou defesa, levar o adversário a supor que o poderio de que se dispõe é maior ou menor do que o real, ocasionando erro tático ou estratégico, e mesmo a desinformação sobre a disposição dos efetivos levaria a equívocos talvez fatais, a maior probabilidade de vitória está com aquele que consegue induzir o oponente a mais erros.

Com a disseminação dos recursos computacionais o acesso à informação passou a ser privilégio de quase todos, a boa e a má informação; conhecimentos antes apenas obtidos em enciclopédias nem sempre disponíveis, dados sobre saúde, trânsito, segurança, entretenimento, política, moda, culinária, mecânica de automóveis… tudo isso e muito mais com o uso de equipamentos quase minúsculos e impensáveis há menos de cinquenta anos. Com isso, os estelionatários, golpistas, maus vendedores, maus políticos, encontraram um campo fértil para suas atividades; todo usuário de qualquer rede social já recebeu inúmeras “informações” ardilosas como a de que sua conta bancária foi fechada ou de que foi feita uma compra não autorizada com seu cartão de crédito, com o objetivo de obter informações que permitam ao criminoso exercer seu crime. Também são comuns notícias falsas de que determinado político teria praticado algo impensável e repugnante, notícias originadas por seus adversários que teriam a ganhar com a desmoralização.

Discutir os limites entre a privacidade e a transparência num ambiente contaminado por interesses escusos não tem sido simples, discernir o falso do verdadeiro quando até instituições seculares como escolas já foram caluniadas, vacinações foram consideradas inoculadoras de comunismos e outras incongruências, é muito difícil para o cidadão comum.

Transformar ouro em carvão, ou vice-versa, tem sido comum, desafiando qualquer pessoa aos cuidados com tudo que lê.