O dramaturgo romano Públio Terêncio (“nada do que é humano me é estranho”) e o poeta inglês John Donne (“nenhum homem é uma ilha”), já haviam definido de certa maneira o que hoje chamamos de globalização ou mundialização cultural, o processo pelo qual nos sabemos integrados de modo definitivo uns aos outros. Para o bem e, mais ainda, para o mal, isto não implica necessariamente em sentimentos solidários, somos unos, estamos juntos em um mesmo planeta e partilhamos seu destino, nem por isso agimos como irmãos, sequer às vezes como pessoas de bom senso. 

Temos, e teremos sempre, necessidade de valores próprios a nós e a nossos próximos, e isso é positivo e nos define como indivíduos e grupos sociais: idiomas e idioletos, regionalismos, culinárias específicas, modos de trajar e habitar, música e outras artes, preferências estéticas; além das inevitáveis e não culturais características físicas.

Lembramos com tristeza a morte de um missionário numa pequena ilha, por população que não desejava contato externo; apesar da crescente homogeneização cultural pequenos nichos permanecem quase intocados, nos alertando para as diferenças imensas que ainda temos entre nós, apesar da humanidade compartilhada.

Independentemente de quem teria ou não razão neste triste episódio, fica bastante evidente que nenhum de nós tem uma resposta definitiva e única em relação à percepção que temos da realidade, a qual muitas vezes nos leva a um misto de estranheza, curiosidade, surpresa ou incompreensão. Entretanto, todo estranhamento tem ao mesmo tempo uma função esclarecedora, já que descobertas inovadoras partem dele, fazendo procurar motivos, iniciando uma investigação científica e levando ao conhecimento.

Analisar algo com assombro, com aquilo que denominamos olhar estrangeiro, ou seja, daquele que acaba de chegar, que é capaz de ver o que os demais já não podem perceber, que apreende pela primeira vez, sendo capaz de viver histórias originais num lugar de rotina, descobrir beleza naquilo que ninguém mais a concebe, ou o horror do que já se considera normal, torna produtivo o modo de percepção ao retirar obstáculos para o reconhecimento do real: por meio de uma outra cultura é que reconhecemos a nossa de forma mais completa e profunda.

Vamos aos poucos perdendo o sentido do outro – quem eram nossos antepassados? – de onde viemos? – quais caminhos percorremos? – e assim não podemos distinguir percursos futuros. Mas é no aspecto existencial, quem divide o bairro, a cidade, a Terra conosco, que a dificuldade maior se apresenta, como se nossa identidade excluísse todo o não-eu. Catalogamos os demais quantitativamente, porém não qualitativamente, incapazes de detectar os valores éticos, morais, espirituais ou mesmo estéticos de outras comunidades.

Aquilatar com horror, como se pela primeira vez, a quantidade de lixo que produzimos diariamente, o estado a que estamos reduzindo os oceanos e toda a vida marinha, nossos confortáveis e mortíferos plásticos, a extinção de muitos animais, a crueldade que exibimos frente a tudo e todos que não são exatamente os nossos muito próximos, ou que represente nosso interesse imediato, certamente nos transformaria.

Alguns países estão aderindo às bicicletas, aos biodegradáveis, a menos embalagens, aos maiores cuidados com o lixo, à diminuição dos impulsos consumistas, mas a estes olhamos com o enlevo dedicado às causas perdidas, exóticas, sonhadoras. São estrangeiros, não somos nós.

Nós, os não estrangeiros, chocados e envergonhados, como na tragédia que ocorreu em Minas Gerais e com a que vitimou meninos jogadores de futebol, contemplamos necessidade de cumprir as leis já existentes e não procurar motivos e pretextos para torna-las inócuas, não “judicializar” questões que extrapolam a própria justiça, são morais e essenciais para a sobrevivência de nós todos.

Que olhar estrangeiro seria necessário para que não nos habituássemos a estas catástrofes que produzimos por ganância, imprudência e negligência?

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.