“…ordene a seus rapazes que tirem as barricadas para que a humanidade doente possa passar […] só que, por favor, não se amontem, porque depois não respondo se as suas doenças se misturam e ficam curados do que não têm…”
Gabriel García Márquez, in “Blacaman, o bom vendedor de milagres”.
García Márquez relata neste conto o desespero justificado de quem, doente, procura a cura; no caso com as poções de Blacaman (adaptação irônica de “Black Man”, como os marinheiros americanos em “visita” à Colômbia se referiam aos mascates nativos). Há no pedido de Blacaman quase um tratado jurídico sobre medicamentos e poções “…não respondo se as suas doenças se misturam e ficam curados do que não têm”, uma verdadeira cláusula de segurança para prescritores e fabricantes de medicamentos.
Mesmo nos casos de maior responsabilidade, em que a medicação foi receitada por um profissional de saúde, e sua posologia e prazo de uso recomendados devidamente, ocorrem usos longe do ideal com abandono precoce, em que o ciclo do tratamento não se completa, ou prolongamento quando o fármaco é usado além do necessário e até mesmo do saudável. Não se pode debitar tudo aos pacientes leigos, no caso recente da crise dos opiáceos, usados indiscriminadamente nos Estados Unidos em muitos casos com recomendação médica apesar de adições graves e até mortes em grande número; a indústria farmacêutica apenas continuou produzindo os opioides conforme a demanda e não a pesquisa mais séria de suas consequências.
A medicalização excessiva não é um processo recente, vem acontecendo nas sociedades ocidentais há mais de dois séculos, sempre de formas diversas, porém conduzida pela ideia de que tudo pode ser tratado com remédios, desde pequenas dores físicas a grandes dores emocionais.
Evidentemente remédios são necessários em muitos casos, dores desnecessárias podem e devem ser evitadas, mas nem por isso devemos poupar-nos de algumas fases como lutos, por exemplo, atordoados por fármacos que impedem reflexão e amadurecimento.
É fácil ver que a divulgação de alguns conhecimentos médicos como “ao alcance de todos”, ou seja, a medicina inserida no campo social, provoca práticas e discursos que se apropriam da racionalidade médica; a familiaridade com as noções médicas difundidas, passa por um lado a um aspecto positivo, o de conceber a saúde como valor primordial que merece tudo para preservá-la ou restaurá-la, e outro pela banalização do uso de medicamentos, a hiperprevenção de todos os males, tanto no Brasil quanto em outras partes do mundo.
Assim, a vida cotidiana é apropriada pela medicina e interfere diretamente nos comportamentos comunitários, na construção de conceitos e nos costumes, e por isso pesquisadores de diferentes áreas e regiões discutem a medicalização da vida e os conflitos éticos no âmbito no campo da saúde pública.
Laboratórios farmacêuticos provocam questões éticas pelas consequências que os interesses privados trazem para as pesquisas na área de saúde, pois estimulam o consumo por meio de publicidade, o que modifica a produção e altera profundamente a visão sobre prioridades e modos de condução de determinados problemas; o país tem doenças negligenciadas, como a malária, e outras extremamente negligenciadas, como a doença de Chagas, grande mazelas que atingem milhares de pessoas em países pobres, e não são prioridades pela falta de retorno financeiro, assim esta indústria prefere realizar investimentos milionários nas doenças mentais, pequenos desacertos emocionais e distúrbios neurológicos. Estimulam o consumo de antidepressivos, com diagnósticos superficiais da depressão e dos modos de subjetivação; doses são recomendadas para deficiência, autismo e neurodiversidade sem o devido acompanhamento médico e participação de pais ou tutores, tornando estas organizações extremamente rendáveis.
A utilização de medicamentos psicoativos na infância e juventude tem subido drasticamente, qualquer problema de desajuste escolar é imediatamente classificado como transtorno de déficit de atenção com hiperatividade, que existem, mas merecem diagnóstico detalhado por profissionais qualificados, evitando definir como patológicas as situações habituais da adversidade humana. Medicamentos passam a funcionar como “amortecedores químicos”, e ensinamos jovens a serem intolerantes às frustrações com estas farmacologias compulsivas.
Os antigos gregos distinguiam duas formas de vida: a bios, forma particular de um indivíduo ou grupo viver, a zoé que é o viver comum a todos os seres, sem individuação. É na zoé atual, o fato eminentemente biológico de todos, que situamos o fenômeno da medicalização, como se todas as formas de subjetividades pudessem ser entendidas apenas como corpos sem aspectos emocionais, vida objeto, indigna, mercantilizada pela indústria farmacêutica.
O uso de medicamentos psicoativos em casos onde outros métodos poderiam ser uma alternativa, pode ser prejudicial a qualquer ser humano, mas em particular na infância. É preciso ter em mente que remédios são recursos terapêuticos fundamentais, porém também são bens de consumo, e as interfaces entre a bioética e as políticas públicas entram muitas vezes em conflito.
Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.