No próximo carnaval, a Mangueira não levará à avenida um tributo a Cartola, que faria 100 anos no dia 11 de outubro de 2008. No entanto, se a escola pôs de lado seu símbolo maior – ele não só foi um de seus fundadores, como deu à agremiação suas cores e seus primeiros sambas-enredo -, a família de Angenor de Oliveira já prepara uma série de homenagens por ocasião do centenário. A programação inclui livro exposição, show, caixa de CDs, peça de teatro, seminário e até concursos de músicas e de monografias sobre o compositor.

O projeto Cartola 100 anos nasceu no Centro Cultural Cartola, um interessante espaço de sete mil metros quadrados, dirigido por seus netos, Pedro Paulo e Nilcemar Nogueira. Um dos pontos altos do projeto é uma publicação que resgatará as histórias por trás dos sambas do mestre. Deverá sair pela editora Euterpe e terá como base a dissertação de mestrado de Nilcemar, que, desde adolescente, quando passou a morar com Cartola e dona Zica, dedica-se a guardar o legado do avô.

“Já existem duas biografias e dois livros infantis sobre Cartola, mas este vai abordar o processo de criação. Os parceiros vão contando que ele construía tudo junto ao violão, letra e música”, explica.

A idéia é revelar a identidade de Cartola como poeta do samba e como pessoa. Recuperar a trajetória do homem que estudou até a quarta série e trabalhou como pedreiro e vigia. Do compositor que se chateava quando compunha com parceiros mais letrados e os críticos acreditavam que a parte que lhe coubera fora a mais simples, por ser ele menos escolarizado. Do artista que gravou o primeiro LP aos 65 anos – e que pararia no quarto, doente, a um ano da morte.

O livro também tem a intenção de desmentir comentários que se perpetuaram desde então. Como o que diz que a canção “O Mundo é um Moinho” foi feita por Cartola para a filha, Glória Regina. “Na verdade, ele escreveu a partir de uma história de um amigo do trabalho (na época, era contínuo do Ministério da Indústria e Comércio) sobre sua filha”, esclarece Nilcemar.

Outra lenda que circula: de que “As Rosas não Falam” foi escrita no cenário Morro da Mangueira dos anos 1970. A composição só surgiu quando o casal já tinha se mudado para a casa de Jacarepaguá, bem longe dali, onde dona Zica cultivava um jardim – o casal saiu da favela por causa do assédio excessivo a Cartola, que apareceu quando ele finalmente teve seu gênio reconhecido.

Nilcemar chora quando fala da decisão da Mangueira de cantar o frevo pernambucano no ano do centenário de Cartola. “Não se pode ocultar a história a ponto de sepultar a essência. Se hoje as escolas chegaram onde chegaram é porque algumas pessoas abriram o caminho. Hoje, a escola fica atrelada ao patrocínio, mas tem de haver uma maneira elegante de aliar o capitalismo e suas referências”, desabafa. Ela se refere ao grande investimento que a prefeitura do Recife fará na escola: segundo o presidente da Mangueira, Percival Pires, serão R$ 3 milhões, sem os quais seria impossível fazer o desfile. O mote são os 100 anos do frevo, celebrados lá em 2007.
“O pessoal do Recife queria fazer em 2008. Este ano, já fizemos o enredo da língua portuguesa e eu fiquei no vermelho, com dívida de quase R$ 2 milhões. É complicado”, justifica Pires “Mesmo que o enredo não seja sobre Cartola, Mangueira na avenida é Cartola na avenida.” Para encerrar a questão, ele deixa claro: “Quem responde pela escola sou eu, na hora boa e na ruim. Se a escola vai pro buraco, eu vou junto!”
Parceiro de Cartola no clássico “Alvorada”, Hermínio Bello de Carvalho não aceita tais argumentos – pensa como Nilcemar. “A Mangueira vem cometendo seguidos suicídios culturais na escolha de seus enredos. Vale mais o patrocínio obtido do que o tema a ser desenvolvido pela escola. Era mais do que óbvio que o divino Cartola, em seu centenário, deveria ser homenageado pela escola que ajudou a fundar e cujas cores elegeu Desrespeito ou ingratidão? Cada um tire sua conclusão”, escreveu à reportagem.
Nelson Sargento, com quem Cartola compôs “Velho Estácio” “Deixa” e outros sambas, contemporiza, lembrando que a Mangueira já cantou Cartola, 24 anos atrás. “Com sinceridade, acho um despautério esperar uma data redonda para homenagear alguém. A Mangueira naturalmente não deve ter se lembrado disso ou então já deveria ter planejado (a homenagem ao frevo).”
Conselheiro do Centro Cultural Cartola, Elton Medeiros diz que a opção da escola reflete as transformações vividas pelo carnaval carioca – hoje realizado à base de milhões, provenientes de empresas e governos, muitíssimo diferente daqueles anos românticos da era Cartola. “As escolas de samba passaram por transformações culturais. O enredo hoje em dia está ligado a outros interesses, muito diferentes da história da entidade”, acredita o co-autor de “Peito Vazio”.
Crítico, já na década de 1970, da aceleração do samba-enredo e da redução do tamanho das letras, Cartola não viveu para ouvir os sambas estilo “fórmula de bolo” que os cariocas escutam hoje. “Ele não se empolgaria com o que se vê na avenida”, acredita Medeiros. “Cartola não se interessaria por esse tipo de cadência, essas letras mais diretas. São como um jingle, não são escritas para fazer um pouco de poesia.”

A caixa comemorativa de CDs terá uma reedição de seus quatro discos e um quinto só com inéditas. Entre elas, as letras musicadas, após sua morte, por Francis Hime e Vander Lee, que aceitaram as restrições impostas por Nilcemar. Sempre cuidadosa com a obra do avô, ela guarda em casa pastas com manuscritos e músicas inacabadas. Relíquias como o poema sem título e sem data (talvez seja da década de 1960, ela diz) em que o poeta, em duas estrofes, desdenha de quem o critica: “Não me sinto preocupado/sei que são uns despeitados.”
Será realizado também no teatro Oscar Niemeyer, em Niterói, um show com gente que sempre cantou Cartola, como Alcione, Beth Carvalho e Emílio Santiago, e  Velha Guarda da Mangueira. Niterói sediará também uma exposição com textos, fotos, filmes e documentos. A mostra vai recuperar a vida do compositor, desde os anos de menino, entre os bairros do Catete e Laranjeiras, na zona sul do Rio, à chegada, em 1919, à Mangueira (então com cerca de 50 barracos); a fundação da escola (a segunda no Rio de Janeiro); o ostracismo; o encontro e o casamento com dona Zica; a abertura do lendário Zicartola; a consagração tardia; o câncer e o fim, aos 72 anos, a 30 de novembro de 1980.
O sambista vai virar ainda tema de cartoon (Lan já foi convidado para criar uma logomarca). E, se a Mangueira não o homenagear, a Mangueira do Amanhã, sua escola mirim, vai reeditar o tema da irmã mais velha de 1983: “Verde que te Quero Rosa”, título de uma música de Cartola. Duas escolas menores, a Paraísos do Tuiuti e Mocidade Unida de Jacarepaguá, também desfilarão sua vida. No grupo especial, a Viradouro vai incluí-lo no enredo. Finalmente, estão previstos também um concurso de monografias que correrá faculdades de Letras Brasil afora e um musical. O prêmio é uma reprodução de um anel que ele não tirava do dedo: de ouro em formato de lira, com duas pedras coloridas. As cores? Verde e rosa.