A diferença fundamental entre os humanos e os demais animais é a consciência da morte. Ainda que muitos “bichos” demonstrem algo como pesar à perda de companheiros, e exemplos tocantes são dados com frequência por cachorros quando seus tutores falecem, não há evidencias de que saibam que também morrerão. Observa-se a busca por isolamento de gatos, cachorros, elefantes, quando estão muito debilitados, donde nasceu a lenda do “cemitério de elefantes”, mas esse fato é apenas instinto de autoproteção em momento de fragilidade.

Independentemente do que se possa dizer, o conhecimento real da finitude da vida, de que a morte é inevitável, é devastador. Praticamente toda a cultura humana passa pela busca de eternidade, em vários níveis e modalidades: as alternativas religiosas que asseguram que “a morte não é o fim”; as grandes realizações artísticas – não se pode negar a imortalidade, embora mortos fisicamente, de Bach, Shakespeare, Machado de Assis, e tantos outros gênios eternos em suas obras; as filosofias estoicas que afirmam que nada existe portanto nada morre…

Também como forma de minorar o horror foram criados desde sempre rituais de sepultamento, feitas promessas de vida eterna e de sucessões de vidas, para nos consolar emocionalmente desta percepção de finitude; e durante muitos anos, em praticamente todo o mundo ocidental sepultamentos eram realizados dentro de templos e alguns outros poucos “campos consagrados”; fora destes locais era prática quase que exclusivamente no caso de mortes em batalhas, grandes viagens, pessoas consideradas indignas ou apóstatas.

No Brasil católico, o enterro fora das igrejas era reservado àqueles que não professavam o catolicismo: judeus, protestantes, muçulmanos, escravos ou aqueles considerados malditos. Aos poucos, em função do crescimento das cidades, aumento populacional que trouxe crescimento dos sepultamentos e menor prazo entre um e outro, a pratica de acolhimento dentro de igrejas tornou-se inviável até como medida sanitária, que propunha locais abertos, preferencialmente fora dos limites da cidade, em espaços denominados campos-santos, mas ainda assim administrados pelas igrejas ou irmandades. Isso disseminou-se entre outras religiões, e hoje é prática consagrada, gerando inclusive novas atividades culturais.

A visitação aos túmulos, com diferentes comportamentos, conforme as tradições de algumas entidades religiosas ou comunitárias, se tornou um hábito fortemente instituído, desde o de reunir familiares sobre os túmulos e ali passar o dia, fazendo companhia como se os falecidos estivessem presentes; até o de levar comidas e bebidas para alimentar o espírito do morto, apenas levar velas e flores para iluminar o caminho em direção ao outro mundo ou mesmo visitas guiadas nas quais especialistas apontam muito da cultura daquela comunidade através de suas práticas mortuárias.

A igreja católica instituiu a comemoração de Dia dos Mortos no século X, celebrado nos mosteiros, e oficializou em 1915, com ritos e celebrações que lembrassem mais procedimentos cristãos que de cultura pagã; embora no Brasil seja comum a associação do ritual de passagem para o “outro lado” com comidas e bebidas, onde se passa a noite contado “causos” e anedotas.

Este costume foi bastante influenciado pelos africanos, e descrito fartamente por viajantes estrangeiros como verdadeiras comemorações que precediam os sepultamentos, com foguetes e tambores; sincretismo fortalecido quando o branco de descendência europeia incorpora este espírito festivo, de certa forma contrário ao sentimento da perda. Em algumas regiões nordestinas, a cerimônia tem a participação de familiares, conhecidos e mulheres carpideiras contratadas para chorar, rezar e cantar músicas em honra ao falecido.

Consolidou-se então a entidade imaginária do esqueleto humano tendo nas mãos uma foice destinada a ceifar vidas, difundida na crendice popular e representada de forma associada aos cemitérios. Esta figura, com véu ou capuz, percorre ruas da cidade ou os campos de forma misteriosa, mas reside nos lugares de “repouso eterno”, sem deixar de ter relações com os poderes temporais e místicos. Ela é a única certeza da vida, a inexorável, a implacável, aquela de quem não se diz o nome, demarca fronteira entre o real e o imaginário, presente na memória coletiva. No Brasil os contos de beira do fogo, relatados por muitas vezes por avós, criaram em torno dela centenas de contos, e toda uma cultura popular em torno do tema, incorporados por José Mojica Marins, o “Zé do Caixão”, em seus filmes de “terrir”, sátira de nossos costumes e medos ancestrais.

Tudo isso se integrou ao que consideramos a história de nossa civilização, influenciou nosso sistema educacional ao longo dos anos, pois diversidade e promoção das identidades locais, apesar da heterogeneidade de sotaques e palavreados regionais, crenças, costumes e tradições operacionalizaram a política brasileira e densidade jurídica nesta área, além de constituir a cultura que nos define como brasileiros.

O sistema escolar não fica isento destas influências, e nem deveria.

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.